Receituário espiritual
Epidemia da Ilha MaurĂ­cio
Na Revista de julho de 1867 descrevemos a terrível doença que vem devastando a ilha Maurício (antiga Ilha de França) nos últimos dois anos. O último correio nos traz cartas de dois dos nossos irmãos em crença daquele país. Numa se encontra a seguinte passagem:

“Peço que me desculpeis por ter ficado tanto tempo sem vos dar as minhas notícias. Certamente não era o desejo que me faltava, mas antes a possibilidade; como o meu tempo é dividido em duas partes – uma para o trabalho que me faz viver, e a outra para a doença que nos mata – tenho muito poucos instantes para o empregar segundo meus gostos. Contudo, estou um tanto mais tranqüilo; há um mês que não tenho tido febre. É verdade que é nesta época que ela parece ceder um pouco, mas, ai! é recuar para subir mais, porque os próximos calores sem dúvida lhe vão restituir o vigor inicial. Assim, bem convencida da certeza dessa perspectiva, vivo como posso, desligando-me tanto quanto possível das vaidades humanas, a fim de facilitar minha passagem ao mundo dos Espíritos, onde, francamente, de modo algum eu lamentaria me encontrar, em boas condições, bem entendido.”

Certo dia um incrédulo dizia, a propósito de uma pessoa que exprimia um pensamento análogo, a respeito da morte: “É preciso ser espírita para ter semelhantes idéias!” Sem o querer, fazia o mais belo elogio do Espiritismo. Não é um grande benefício a calma com a qual ele faz considerar o termo fatal da vida, que tanta gente vê aproximar-se com pavor? Quantas angústias e tormentos são poupados aos que encaram a morte como uma transformação de seu ser, uma transição instantânea, sem interrupção da vida espiritual! Esperam a partida com serenidade, por que sabem para onde vão e o que serão; o que lhes aumenta a tranqüilidade é a certeza não só de reencontrar os que lhes são caros, mas a de não ficarem separados dos que ficaram depois deles; de os ver e os ajudar mais facilmente e melhor do que quando vivos; não lamentam as alegrias deste mundo, porque sabem que terão outras maiores, mais suaves, sem mescla de tribulações. O que causa o temor da morte é o desconhecido. Ora, para os espíritas, a morte não tem mais mistérios.

A segunda carta contém o que segue:

“É com um sentimento de profunda gratidão que venho agradecer-vos os sólidos princípios que inculcastes em meu espírito e que, sozinhos, me deram a força e a coragem de aceitar com calma e resignação as rudes provas que venho sofrendo de um ano para cá, pelo fato da terrível epidemia que dizima a nossa população. Sessenta mil almas já partiram!

“Como deveis imaginar, a maior parte dos membros do nosso grupo de Port-Louis, que já começava a funcionar tão bem, teve, como eu, de sofrer nesse desastre geral. Por uma comunicação espontânea de 25 de julho de 1866, foi-nos anunciado que íamos ser obrigados a suspender os nossos trabalhos; três meses depois fomos forçados a descontinuá-los, em conseqüência da moléstia de vários de nós e a morte de nossos pais e amigos. Até este momento não pudemos recomeçar, embora todos os nossos médiuns estejam vivos, bem como os principais membros do nosso grupo. Várias vezes tentamos reunir-nos novamente, mas não o conseguimos. Eis por que cada um de nós foi obrigado a tomar conhecimento isoladamente de vossa carta, datada de 26 de outubro de 1867, à senhora G..., na qual se encontra a comunicação do doutor Demeure, que nos dá grandes e muito justos ensinamentos sobre tudo quanto sucede conosco. Cada um de nós pôde apreciar a sua justeza, pelo que lhe concerne, porque é de notar que a doença tomou tantas formas múltiplas, que os médicos jamais puderam chegar a um acordo. Cada um seguiu um método particular.

“Entretanto, o jovem doutor Labonté parece ser o que melhor definiu a doença. Quero crer que esteja certo do ponto de vista material, pois passou por todos os sofrimentos de que se faz narrador53. Em nosso ponto de vista espiritualista, poderíamos aí ver uma explicação do prefácio de O Evangelho segundo o Espiritismo, porque o período nefasto que atravessamos foi marcado, no começo, por uma chuva extraordinária de estrelas cadentes, caída em Maurício na noite de 13 para 14 de novembro de 1866. Embora esse fenômeno fosse conhecido, por ter sido muito freqüente de setembro a novembro, em certas épocas periódicas, não é menos admirável que, desta vez, as estrelas cadentes foram tão numerosas que impressionaram e fizeram 53 O Sr. doutor Labonté descreveu a epidemia da ilha Saint-Maurice numa brochura que lemos com interesse, e na qual se revela observador sério e judicioso. É um homem devotado à sua arte, e tanto quanto se pode julgar de longe, por analogia, ele nos parece ter bem caracterizado essa singular doença, do ponto de vista fisiológico. Infelizmente, no que concerne à terapêutica, ela frustra todas as previsões da Ciência. Num caso excepcional, como esse, o insucesso nada prejulgaria contra o saber do médico. O Espiritismo abre à ciência médica, horizontes inteiramente novos, ao demonstrar o papel preponderante do elemento espiritual na economia e em grande número de afecções, nas quais a Medicina falha, porque se obstina em lhe buscar a causa somente na matéria tangível. O conhecimento da ação do perispírito sobre o organismo adicionará um novo ramo à patologia e modificará profundamente o modo de tratamento de certas doenças, cuja verdadeira causa não será mais um problema. estremecer os que as observaram. Esse imponente espetáculo ficará gravado em nossa memória, porque foi precisamente depois desse acontecimento que a doença tomou um caráter lamentável. Desde esse momento, tornou-se geral e mortal, o que hoje nos pode autorizar a pensar, como diz o doutor Demeure, que chegamos ao período da transformação dos habitantes da Terra, por seu adiantamento moral.

“A propósito dos calmantes recomendados pelo doutor Demeure, falastes de castanhas-da-índia, cujo emprego seria mais vantajoso que o quinino, que afeta os órgãos cerebrais. Aqui não conhecemos esta planta; mas depois da leitura de vossa carta, onde se faz menção dela, o nome de uma outra planta me veio ao espírito por intuição: é o Croton tiglium, vulgarmente chamado em Maurício pinhão-da-índia. Empreguei-o como sudorífero, com muito sucesso, mas apenas as folhas, pois o grão é um veneno violento. Peço-vos por obséquio perguntar ao doutor Demeure o que ele pensa desta planta, e se aprova o emprego que dela fiz, como calmante, porque partilho completamente de sua opinião sobre o caráter desta doença bizarra, que me parece uma variante do ‘ramannenzaa’, ou febre de Madagáscar, salvo as manifestações exteriores.”

Se se pudesse duvidar, por um só instante, da vulgarização universal da Doutrina Espírita, a dúvida desapareceria vendo os que ela faz felizes, as consolações que proporciona, a força e a coragem que dá nos momentos mais penosos da vida, porque está na natureza do homem buscar o que possa garantir a  sua felicidade e a sua tranqüilidade. Aí está o mais poderoso elemento de propagação do Espiritismo, e que ninguém lho tirará, a menos que dê mais do que ele dá. Para nós é uma grande satisfação ver os benefícios que ele espalha; cada aflito consolado, cada coragem abatida levantada, cada progresso moral operado nos paga ao cêntuplo as nossas penas e as nossas fadigas; eis ainda uma satisfação que ninguém tem o poder de nos tirar. Lidas na Sociedade de Paris, estas cartas provocaram as seguintes comunicações, que tratam da questão do duplo ponto de vista local e geral, material e moral.

(Sociedade de Paris, 16 de outubro de 1860)

Em todos os tempos fizeram preceder os grandes cataclismos fisiológicos de sinais manifestos da cólera dos deuses. Fenômenos particulares precediam a irrupção do mal, como uma advertência para se preparar para o perigo. Com efeito, essas manifestações ocorreram não como um presságio sobrenatural, mas como sintomas da iminência da perturbação.

Como se teve razão para vos dizer, nas crises em aparência as mais anormais que, sucessivamente, dizimam as diferentes regiões do globo, nada é deixado ao acaso; elas são a conseqüência das influências dos mundos e dos elementos uns sobre os outros (outubro de 1868); elas são preparadas de longa data e sua causa é, por conseguinte, perfeitamente normal.

A saúde é o resultado do equilíbrio das forças naturais. Se uma doença epidêmica causa estragos num lugar qualquer, não pode ser senão a conseqüência de uma ruptura desse equilíbrio; daí o estado particular da atmosfera e os fenômenos singulares que aí podem ser observados.

Os meteoros conhecidos pelo nome de estrelas cadentes são compostos de elementos materiais, como tudo o que cai sob os nossos sentidos; não aparecem senão graças à fosforescência desses elementos em combustão, e cuja natureza especial por vezes desenvolve, no ar respirável, influências deletérias e morbíficas. As estrelas cadentes eram, para Maurício, não o presságio, mas a causa secundária do flagelo. Por que sua ação se exerceu em particular sobre aquela região? Primeiro porque, como disse muito bem o vosso correspondente, ela é um
dos meios destinados a regenerar a Humanidade e a Terra propriamente dita, provocando a partida de encarnados e a modificação dos elementos materiais; e, também, porque as causas que determinam essas espécies de epidemia em Madagáscar, no Senegal e por toda parte onde a febre palustre e a febre amarela exercem sua devastação, não existindo na Ilha Maurício, a violência e a persistência do mal deveriam determinar a pesquisa séria de sua fonte, e atrair a atenção sobre a parte que aí pudessem tomar as influências de ordem psicológica.

Os que sobreviveram, em contato forçado com os doentes e os moribundos, foram testemunhas de cenas que a princípio não se deram conta, mas cuja lembrança lhes voltará com a calma, e que não podem ser explicadas senão pela ciência espírita. Os casos de aparições, de comunicações com os mortos, de previsões seguidas de realização, aí têm sido muito comuns. Apaziguado o desastre, a memória de todos esses fatos surgirá e provocará reflexões que, pouco a pouco, levarão a aceitar as nossas crenças.

Maurício vai renascer! o ano novo verá extinguir-se o flagelo de que foi a vítima, não por efeito dos remédios, mas porque a causa terá produzido o seu efeito; outros climas, por sua vez, sofrerão a opressão de um mal da mesma natureza, ou de outra qualquer, determinando os mesmos desastres e conduzindo aos mesmos resultados.

Uma epidemia universal teria semeado o pânico na Humanidade inteira e por muito tempo detido a marcha de todo progresso; uma epidemia restrita, atacando sucessivamente e sob múltiplas formas, cada centro de civilização, produzirá os mesmos efeitos salutares e regeneradores, mas deixará intactos os meios de ação de que a Ciência pode dispor. Os que morrem são feridos de impotência; mas os que vêem a morte à sua porta buscam novos meios de a combater. O perigo torna inventivo; e, quando todos os meios materiais estiverem esgotados, cada um será mesmo constrangido a pedir a salvação aos meios espirituais.

Sem dúvida é apavorante pensar em perigos dessa natureza, mas, já que são necessários e não terão senão salutares conseqüências, é preferível, em vez de os esperar tremendo, preparar-se para os afrontar sem medo, sejam quais forem os seus resultados. Para o materialista, é a morte horrível e o nada depois; para o espiritualista e, em particular, para o espírita, que importa o que acontecer! Se escapar ao perigo, a prova o encontrará sempre inabalável; se morrer, o que conhece da outra vida o fará encarar a passagem sem empalidecer.

Preparai-vos, pois, para tudo, e sejam quais forem a hora e a natureza do perigo, compenetrai-vos desta verdade: a morte não passa de uma palavra vã e não há nenhum sofrimento que as forças humanas não possam dominar. Aqueles a quem o mal for insuportável, serão os únicos que o terão recebido com o riso nos lábios e a indiferença no coração, isto é, que se julgarão fortes em sua incredulidade.

Clélie Duplantier

(Sociedade de Paris, 23 de outubro de 1868)

O croton tiglium certamente pode ser empregado com sucesso, sobretudo em doses homeopáticas, para acalmar as cãibras e restabelecer a circulação normal do fluido nervoso; pode-se também usá-lo localmente, friccionando a pele com uma infusão leve, mas não seria prudente generalizar o seu uso. Não é aqui um medicamento aplicável a todos os doentes, nem a todas as fases da doença. Caso fosse de uso público, só deveria ser aplicado por indicação de pessoas que pudessem constatar a sua utilidade e lhe apreciar os efeitos; de outro modo, aquele que já tivesse experimentado a sua ação salutar, poderia, num dado caso, a ele ser completamente insensível, ou mesmo experimentar os seus inconvenientes. Não é um desses medicamentos neutros, que não fazem qualquer mal, quando não produzem o bem. Só deve ser empregado em casos especiais, e sob a direção de pessoas que possuam conhecimentos suficientes para dirigir a sua ação.

Aliás, espero que não seja necessário experimentar a sua eficácia, e que um período mais calmo se prepara para os infelizes habitantes de Maurício. Não é verdade que já estejam livres, mas, salvo exceção, em geral os ataques não são mortais, a menos que incidentes de outra natureza venham dar-lhes um caráter de gravidade particular. Em si mesma a doença toca o fim. A ilha entra no período de convalescença; pode haver algumas pequenas recrudescências, mas tenho razões para crer que a epidemia irá, de agora em diante, diminuindo até a completa extinção dos sintomas que a caracterizam.

Mas qual será a sua influência sobre os habitantes de Maurício que tiverem sobrevivido ao desastre? Que conseqüências deduzirão das manifestações de toda natureza, de que foram testemunhas involuntárias? As aparições, de que um grande número foi objeto, produzirão o efeito que delas se tem o direito de esperar? As resoluções tomadas sob o império do medo, do remorso e das censuras de uma consciência perturbada, não serão reduzidas a nada, quando voltar a tranqüilidade?

Seria desejável que a lembrança dessas cenas lúgubres se gravasse de maneira indelével em seus espíritos, e os obrigasse a modificar a sua conduta, retificando suas crenças; porque devem estar bem persuadidos de que o equilíbrio não se restabelecerá de maneira completa senão quando os Espíritos estiverem tão despojados de sua iniqüidade que a atmosfera seja purificada dos miasmas deletérios que provocaram o nascimento e o desenvolvimento do mal.

Entramos cada vez mais no período transitório, que deve levar à transformação orgânica da Terra e à regeneração de seus habitantes. Os flagelos são os instrumentos de que se serve o grande cirurgião do Universo para extirpar, do mundo, destinado a marchar para frente, os elementos gangrenados que nele provocam desordens incompatíveis como o seu novo estado. Cada órgão, ou melhor dizendo, cada região será, sucessivamente, dissecada por flagelos de diversas naturezas. Aqui, a epidemia sob todas as suas formas; ali, a guerra, a fome. Cada um deve, pois, preparar-se para suportar a prova nas melhores condições possíveis, melhorando-se e se instruindo, a fim de não ser surpreendido de improviso. Algumas regiões já foram provadas, mas seus habitantes se equivocariam redondamente se se fiassem na era de calma, que vai suceder à tempestade, para recaírem nos seus antigos erros. É uma pequena trégua que lhes é concedida, para entrarem num caminho melhor; se não o aproveitarem, o instrumento de morte os experimentará até os trazer ao arrependimento. Bem-aventurados aqueles a quem a prova feriu de começo, porque terão, para se
instruírem, não só os males que sofreram, mas o espetáculo daqueles seus irmãos em humanidade, que por sua vez serão feridos. Esperamos que um tal exemplo lhes seja salutar, e que entrem, sem hesitar, na via nova, que lhes permitirá marchar de acordo com o progresso.

Seria desejável que os habitantes de Maurício não fossem os últimos a tirar proveito da severa lição que receberam.

Doutor Demeure

R.E. , novembro de 1868, p. 441